sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Mundo de Paradoxos


Não há como negar que a contradição é um dos motores que impulsionam a história da humanidade.

Nem mesmo o próprio Filho de Deus, escapou do paradoxo – Ele nasceu numa região de deserto subtropical, onde jamais nevou. Mas a neve tornou-se um símbolo universal do Natal, desde que a Europa decidiu europeizar Jesus... E, como se isso ainda não bastasse, o Seu nascimento é hoje o negócio mais lucrativo para os mercadores que Jesus expulsou do Templo...

Adolf Hitler, o mais alemão dos alemães, era austríaco. Não era russo Josef Stálin, o mais russo dos russos. Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Margherita Safartti, a mulher mais amada pelo anti-semita Benito Mussolini, era judia. Ernesto Guevara, o Che Guevara, foi considerado totalmente inapto para a vida militar pelo exército argentino. Miguel Arraes, o mais pernambucano dos pernambucanos, era cearense. Ariano Suassuna, maior ícone vivo da cultura de Pernambuco, é paraibano...

Os negros do sul dos Estados Unidos, os mais oprimidos, criaram o Jazz, a mais livre das Músicas... Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros, foi concebido no fundo de um cárcere...

"Acho que você está meio nervosa", diz o estressado. "Te odeio", diz a apaixonada. "Eu jamais trairia você, meu amor", diz aquele que já está tendo um caso com a vizinha ou uma colega de trabalho...

E assim, paradoxalmente, a vida segue o seu rumo, onde cada promessa é uma ameaça e cada perda, um recomeço. Do medo nasce a coragem. Das dúvidas, as certezas. Da dor, o aprendizado. Os sonhos anunciam outra realidade possível. E os delírios, outra razão.

Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A nossa identidade não é uma peça de museu para ficar imóvel nos corredores da mente. Ela deve ser sempre a inquieta e assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia, através dos tempos, em busca do equilíbrio, na louca aventura de viver nesse mundo de paradoxos.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Vida e Música


Música e Vida têm mais em comum do que imaginamos: allegreto, cantantte, adágio, ritornello, pausas, ligaduras, prelúdios, armaduras, tons, escalas maiores e menores, ritmos e estilos variados, notas, afinações, fade-in, fade-out, compassos, descompassos...

Quando nascemos recebemos uma Pauta, um Pentagrama em branco. Nele, temos a chance de compor uma nova peça a ser incorporada à nossa Sinfonia, que guarda todas as Partituras escritas nas nossas apresentações nesse palco desvairado chamado Terra. Uns Músicos são abençoados com Ouvido Absoluto. Outros, penam para entrar no ritmo certo e encontrar o tom ideal – como eu... Mas o tempo, neste caso, é parceiro, e acabamos aprendendo a compor e tocar bem.

Muitas vezes, nos deparamos com alguns contratempos, ou com uma síncope que não foi muito bem ensaiada. Então, perdemos o ritmo e saímos do tom. O mesmo acontece quando encontramos umas escalas pouco comuns ou algumas notas oitavadas.

Nestes casos, a grande sacada é não perder a calma e lembrar que a Vida não deve ser tocada como um Dobrado Militar. Já que nos foi entregue uma Pauta em branco, temos total liberdade de improviso. É só usar a criatividade, sensibilidade e deixar vir à tona todos os sentimentos para compor e tocar com paixão, com tesão mesmo, um swingado Jazz, ou um bom Frevo rasgado!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vocêm Tem Medo de Tubarão? (por Marcelo Szpilman*)


Já pensou que isso pode ser uma fobia provocada por mitos e inverdades?
No dia 7 de fevereiro de 2010, um domingo de sol em Guajará-Mirim (RO), enquanto brincava com seu irmão em uma área reservada para banhistas de um igarapé, uma menina de 11 anos foi atacada por uma jacaré-açu. O animal abocanhou sua vítima, mergulhou e desapareceu. Essa notícia, e como ela foi veiculada, mostra bem o tratamento desigual nos casos de ataque de animais ao homem.

A notícia em questão foi veiculada através de uma pequena chamada na versão online do Jornal O Globo, o que é absolutamente normal. Porém, se tivesse sido um ataque fatal de tubarão, provavelmente a notícia estaria na primeira página da versão impressa desse e de outros jornais. Cabe aqui lembrar dois episódios que ilustram muito bem esse tratamento diferenciado. No final do verão de 2003, o avistamento de dois tubarões nadando na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e sua divulgação, geraram falsos alarmes de ataque de tubarão, medo e insegurança e a veiculação da manchete “cuidado, tubarões estão rondando as praias do Rio”. Nesse mesmo ano, um cidadão estava andando no Centro do Rio de Janeiro e um martelo de obra caiu na sua cabeça e o matou. A manchete “cuidado, martelos estão caindo no Centro do Rio”, se tivesse sido publicada, seria motivo de piada. No entanto, a probabilidade de outra pessoa morrer com um martelo caindo em sua cabeça é infinitamente maior do que atacada por um tubarão nas praias do Rio de Janeiro, onde houve somente 9 ataques nos últimos 90 anos.

Quanto ao poder de causar pânico, nada se compara com o ataque de um tubarão. Na Tanzânia, Moçambique e Etiópia, anualmente, dezenas de pessoas são atacadas e devoradas por leões. Na Índia, os tigres fazem o mesmo. No Egito, cães selvagens atacam centenas de pessoas todos os anos. Elefantes atacam e matam dezenas de pessoas na África, mas ninguém tem fobia de elefante. O melhor amigo do homem é responsável por milhões de ataques e centenas de mortes ao redor do mundo e, com exceção dos que já foram atacados, poucos têm fobia de cachorro. No entanto, a maioria das pessoas, mesmo aquelas que nunca viram o mar, têm fobia de tubarão. Incrível, não?

Bom, e onde eu quero chegar com isso? A pretenção desse artigo é tentar desmitificar essa imagem sensacionalista e irreal. Tentar convencê-lo de que o tubarão não é o famigerado “terror dos mares”. Acredito que Netuno torça para que eu consiga.

Ao entrar no mar, é bem verdade, passamos a compartilhar o ambiente natural desses extraordinários predadores, mas, ainda assim, somente circunstâncias muito especiais costumam ocasionar um ataque ao ser humano. Na realidade, ataques de tubarão ao homem são eventos absolutamente raros em quase todo o mundo. São tão improváveis e inusitados que podemos chamá-los de incidentes.

Das 400 espécies que habitam os oceanos do Planeta, os registros demonstram que somente três são perigosas e realmente podem atacar de forma não-provocada, inclusive no litoral brasileiro. São elas: o tubarão-branco, o tubarão-tigre e o tubarão cabeça-chata. Mas deve-se esclarecer que, fora os ataques motivados por essas circunstâncias especiais, como erros de identificação ou invasão de território, não se sabe exatamente por que essas espécies podem agir desta forma, pois se nós humanos realmente representássemos uma presa apetitosa aos seus olhos, haveria muito poucas praias seguras ao redor do mundo e os ataques seriam diários e contados aos milhares.

O vasto e misterioso oceano sempre foi um elemento provocador de um medo mítico. Se nos tempos das grandes navegações temia-se os dragões e polvos gigantes, os tubarões são, seguramente, os seres marinhos mais temidos e respeitados no mundo contemporâneo. Dentre os grandes animais em todo o planeta implicados em ataques aos seres humanos, apenas os tubarões não permitem um “controle” pontual por parte do homem. Tudo isso, com certeza, potencializa nossa insegurança, mas não podemos desconsiderar o lado racional dessa questão. Veja abaixo alguns dados estatísticos comparativos.

Animais selvagens que mais atacam o homem, no planeta:

Cobras - 250.000 ataques por ano
Crocodilos e jacarés - 2.500 ataques por ano
Abelhas - 1.250 ataques por ano
Hipopótamos - 400 ataques por ano
Elefantes - 250 ataques por ano
Leões - 150 ataques por ano
Tigres - 120 ataques por ano
Tubarões - 80 a 100 ataques por ano

Para cada morte por ataque de tubarão nos EUA, temos:
37 mortes por ataque de cobras
45 mortes por ataque de cachorros

Ataques de cachorros ao homem:
EUA - 4,5 milhões de ataques por ano, com 300 mil hospitalizações.
Rio ou São Paulo - 150 mil ataques por ano.

Riscos e Probabilidades de Morte por:

Ataque cardíaco = 1 em 300
Arma de fogo = 1 em 9 mil
Acidente de carro = 1 em 19 mil
Afogamento = 1 em 225 mil
Raio = 1 em 4 milhões
Acidente de avião = 1 em 8 milhões
Ataque de cachorro = 1 em 11 milhões
Ataque de tubarão = 1 em 95 milhões (acertar na Mega-Sena = 1 em 50 milhões)
(...)

Mesmo aqueles que frequentam as praias e sabem (ou pelo menos deveriam saber) que, estatisticamente falando, têm 130 vezes mais chances de morrer dirigindo seu carro até a praia do que ao se aventurar na água após chegar lá, ou 75 vezes mais chances de morrer afogado na praia do que vitimado por um tubarão ou mesmo 15 vezes mais chances de morrer passando embaixo de um inofensivo coqueiro do que por um ataque de tubarão, apresentam comportamento semelhante. E por que isso acontece?

Ter medo de um animal ameaçador é normal. O medo é um componente importante para nossa sobrevivência. No entanto, quando esse medo torna-se desproporcional à ameaça, sem controle, evolui para fobia. E somente a fobia pode explicar tal comportamento irracional. Não é por outra razão que o ataque de tubarão é o segundo perigo natural mais temido na mente humana. Só perde para a morte. (...)

Tenho mergulhado com tubarões ao redor do mundo, incluindo as três espécies “mais perigosas”, com o objetivo de mostrar que é perfeitamente possível interagir de forma amistosa com esses seres fantásticos. Em minhas palestras pelo Brasil, gosto de expor uma comparação que exemplifica a diferença de interação e potencial de risco. Se você passar ao lado de um grande predador, como o crocodilo, o leão ou o tigre, e ele estiver com fome, há 100% de certeza de que ele o verá como uma presa e irá te atacar e te devorar. No entanto, você pode mergulhar com um tubarão sem saber se ele se alimentou nos últimos dias e, com certeza, ele irá te respeitar e não atacará.

Assim como tenho feito, biólogos marinhos e outros profissionais vêm estudando os tubarões nos últimos anos para tentar entender melhor seu comportamento e o porquê dos ocasionais ataques ao homem. Um dos objetivos principais é desmitificar e apagar a errônea imagem de “comedor de homens”, como a que foi imputada na década de 1970 ao tubarão-branco com o lançamento do famoso filme Tubarão, de Steven Spielberg. A partir daí, a fobia espalhou-se pelo mundo. O filme conseguiu, com grande êxito, passar a distorcida idéia de que o tubarão-branco era um animal perverso e sanguinário, que tinha o homem como alvo principal. A imagem da barbatana dorsal do tubarão-branco, como uma foice singrando as águas atrás da próxima e indefesa vítima humana, que inevitavelmente era abocanhada e mastigada pelas imensas mandíbulas abertas com enormes dentes triangulares aparentes, foi tão forte e negativa que os tubarões-brancos passaram a ser considerados inimigos públicos número 1 da sociedade. Foram perseguidos e caçados impiedosamente. Apesar de seu tamanho e força, milhares foram exterminados e a espécie não conseguiu absorver o golpe, declinando mais de 80% nos últimos 30 anos.

Infelizmente, toda essa fobia continua contribuindo para que a sociedade não se preocupe com a matança cruel dos tubarões. Ou pior, forma uma torcida coletiva de fóbicos que acreditam que a solução passa por “limpar as águas infestadas por essa feras”. Atualmente, cerca de 100 milhões de tubarões são capturados e mortos a cada ano em todos os mares, grande parte para obtenção das barbatanas de tubarão. Isso representa uma monumental ameaça à sobrevivência dos tubarões e está levando muitas populações ao declínio vertiginoso. Nesse ritmo de consumo insustentável, algumas espécies serão extintas nos próximos anos. E sem esses guardiões dos mares, teremos um ambiente marinho doente, frágil e com desequilíbrios ambientais imprevisíveis.

O Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA) tem, entre seus grandes objetivos, a tarefa de desmitificar essa imagem sensacionalista e irreal dos tubarões e mostrar que eles exercem um papel crucial na manutenção da saúde e do equilíbrio dos ecossistemas marinhos. Só assim, conseguiremos convencer as pessoas a aceitar que os tubarões são seres marinhos que também merecem e precisam ser preservados, como os golfinhos, baleias e tartarugas.

Participe do Protuba e ajude a preservar nossos oceanos!

Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA)

Instituto Ecológico Aqualung
Rua do Russel, 300 / 401, Glória, Rio de Janeiro, RJ. 22210-010
Tels: (21) 2558-3428 ou 2558-3429 ou 2556-5030
Fax: (21) 2556-6006 ou 2556-6021
E-mail: instaqua@uol.com.br
Site: http://www.institutoaqualung.com.br

Visite o site e conheça o trabalho do Protuba - http://www.institutoaqualung.com.br/protuba.html

Aproveite para se associar ao Protuba. Não fique parado! Ajude-nos nessa luta!
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* Marcelo Szpilman, Biólogo Marinho formado pela UFRJ, com Pós-Graduação Executiva em Meio Ambiente (MBE) pela COPPE/UFRJ, é autor do livro GUIA AQUALUNG DE PEIXES, editado em 1991, de sua versão ampliada em inglês AQUALUNG GUIDE TO FISHES, editado em 1992, do livro SERES MARINHOS PERIGOSOS, editado em 1998/99, do livro PEIXES MARINHOS DO BRASIL, editado em 2000/01, do livro TUBARÕES NO BRASIL, editado em 2004, e de várias matérias e artigos sobre a natureza, ecologia, evolução e fauna marinha publicados nos últimos anos em diversas revistas e jornais e no Informativo do Instituto Aqualung. Atualmente, Marcelo Szpilman é diretor do Instituto Ecológico Aqualung, Editor e Redator do Informativo do citado Instituto, diretor do Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA) e membro da Comissão Científica Nacional (COCIEN) da Confederação Brasileira de Pesca e Desportos Subaquáticos (CBPDS).

O Fogo de Cada Um


Essa noite viajei no meu sonho, literalmente. Sonhei que surfava em Noronha e, ao cair da noite, ia voar tal como Ícaro, mas sem o risco de minhas asas derreterem.

A vista foi incrível: contemplada de lá do alto, a Terra é como um mar de fogueiras. Cada pessoa é uma fogueira e tem a sua luz própria, não existem duas fogueiras iguais. Durante o vôo encontrei fogueiras grandes, fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Vi gente de fogo sereno, que nem se abala com o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar fagulhas ao contato com a mais suave brisa.

Muitos fogos são preguiçosos, nem iluminam e nem queimam como deveriam. Mas outros incendeiam a vida com tamanha intensidade, que é impossível olhar para eles sem piscar e quem chegar perto pega fogo! Esse tipo de fogo é comum entre as crianças, os sonhadores, os que estão amando e, principalmente, entre algumas mulheres que, mesmo inconscientemente, sabem utilizar todo o seu poder de criação, de sedução. Enquanto voava, rolava The Doors no meu MP4. Então, eu pensei: Jim Morisson se queimou com uma dessas, e compôs “Light my Fire”.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Europa em crise e Brasil bem na fita! Será?...

A crise econômica ainda atinge em cheio a Europa. A Grécia está praticamente falida, a Espanha registra, desde o ano passado, a maior taxa de desemprego da sua história e a Itália segue mergulhada em uma recessão. A situação está tão delicada que a Alemanha, o país mais rico da União Européia, cogita a possibilidade de abandonar o Euro e voltar a adotar o Marco como moeda. Enquanto isso, o mundo volta as suas atenções para os chamados países emergentes, em especial a China, a Índia, a Rússia e o Brasil. Yes, o nosso Brasil – e o carnaval já passou!

A ONU repetiu ontem a previsão do Fórum Econômico Mundial, realizado em janeiro deste ano, na cidade de Davos (Suíça), de que até 2020 o Brasil estará entre as cinco potências econômicas do mundo. Mas essa previsão tem como parâmetro único o volume do PIB (Produto Interno Bruto), desconsiderando o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), ou seja, miséria, desigualdade social, injustiça, tudo continuará... a crescer. É preciso mudar. Não é fácil, pois toda mudança requer uma alteração na ordem das coisas e quem está numa zona de conforto – que costumo chamar de zona vegetativa – não vai querer abrir mão dela.

O Brasil e o mundo vivem uma fase, que se arrasta desde o final da II Guerra Mundial, de ausência de projetos de autonomia, no campo político e social, o que nos impede de sermos responsáveis pela nossa própria construção. Além disso, a grande ausência da humanidade é a sensibilidade. É só observar nas ruas, as pessoas esqueceram o que é sentir – sentir o próximo, sentir a si mesmo, sentir o planeta. E sentir é a chave do conhecer, e conhecer é saber, e saber é poder. O processo de mudança depende de um investimento, seriamente planejado e constantemente monitorado, em educação de qualidade, diferentemente do modelo que temos hoje no nosso país.

Mas não devemos esperar que o governo tome a iniciativa. Cada um de nós deve fazer a sua parte, seja no trabalho ou em casa, buscar informações e divulgá-las, cobrar das autoridades, engajar-se, procurar agir e tentar enxergar o mundo sob um novo olhar, mais holístico e fundamentado em valores nobres que infelizmente estão sendo abandonados pela maioria das pessoas, como a ética, a humildade, a solidariedade, o respeito e o amor.

“Sem liberdade não há verdade, nem virtude.” – Fritz Müller.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A Velha Bruxa


Nesse último domingo fui dar uma volta no Recife Antigo, mesmo sabendo que não seria nem a sombra da efervescência cultural dos dias de carnaval. Andei pela Rua da Guia, onde acontecem os ensaios da Cabra Alada, estava quase deserta. Parei e, por alguns segundos, pude sentir a energia do grupo.

Depois fui à Rua do Bom Jesus, onde rola todo domingo a tradicional feirinha de artesanato. Mesmo nessa época, de ressaca pós-carnaval, a Rua do Bom Jesus continua movimentada. Em meio às barracas caminhavam turistas, músicos e foliões que não se conformavam com o fim do carnaval. De repente, me chamou a atenção um grupo de ciganas devidamente trajadas. Então, comecei a observá-las de perto, e notei que o discurso era o mesmo para todas as pessoas: "Você vai encontrar um belo homem!" - para as solteiras; "Cuidado! Uma mulher próxima a você está fazendo um trabalho para roubar o seu homem." - para as acompanhadas; "Eu vejo um futuro brilhante, muito dinheiro. A sua vida profissional vai dar uma guinada!" - para os homens...

Eis que surgiu uma velha cigana, de olhar penetrante, que contava e cantava histórias. Ela observava pequenos pedaços de papel, tirados dos bolsos da sua grande saia vermelha, e desenvolvia o seu roteiro, como quem lia a sorte de relance, demonstrando total controle do que fazia. De cada papel, saía uma boa história a ser contada e cantada. Uma história de fundação e fundamento. Em cada história, havia gente que voltava a viver, como que por arte de bruxaria.

E assim, a velha bruxa, aos poucos, foi conquistando a atenção de todos e seguia, ressuscitando os esquecidos e os mortos. Das profundezas daqueles bolsos, continuavam a brotar as andanças e os amores - antigos e novos - do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai...

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Carnaval de Pernambuco VI - Frevo


Encerrando a série ‘Carnaval de Pernambuco: a Verdadeira Festa da Cultura Popular’, apresentamos o maior ícone da nossa cultura: o Frevo. Esperamos que esta série alcance o seu objetivo de levar a cada um de vocês um pouco da história dos nossos principais folguedos populares, os nossos brinquedos, o que é fundamental para que possamos defendê-los e manter viva a chama da tradição.

Agora é com vocês. Boa folia e um carnaval com muita Paz, seja em Recife, Olinda ou no interior!

“Deixe o Frevo rolar,
eu só quero saber
Se você vai gostar.
Ah, meu bem
sem você,
não há carnaval.
Vamos cair no passo
e a vida gozar.”
(trecho do Hino dos Batutas de São José – João Santiago dos Reis)

Recife,1896. A ansiedade da torcida se transforma em euforia quando a Banda da Guarda Nacional desponta na esquina, para eles, não havia banda de música mais afinada nem repertório mais animado. Porém, do outro lado da rua, estava a torcida da Banda do 4º Batalhão, que pensava exatamente o mesmo da sua banda. Abrindo caminho à frente de cada banda, vinham os capoeiristas, negros libertos que exibiam os seus golpes e movimentos ao som da música tocada. Os capoeiristas traziam velhos guarda-chuvas e até porretes de madeira, utilizados como arma em caso de choque com os adversários, o que era muito comum na época.

Com o tempo, os Dobrados tocados pelos militares evoluíram para o Frevo, esse ritmo vibrante e contagiante, tipicamente pernambucano. Dos golpes e movimentos dos capoeiristas nasceu a dança, o passo do Frevo. Unidas, música e dança, formam um espetáculo único e de rara beleza. As sombrinhas de Frevo, utilizadas como adorno e também para dar equilíbrio aos passistas, em nada lembram os grandes guarda-chuvas e muito menos os velhos porretes dos capoeiristas. Elas são pequenas e multicoloridas, dando um ar de graça e beleza ao passista e à dança.

A palavra Frevo nasceu da linguagem simples do nosso povo e vem de ferver, que as pessoas pronunciavam “frever”. Significa fervura, efervescência, agitação. A primeira referência ao Frevo na Imprensa foi no Jornal Pequeno, na edição de 09 de fevereiro de 1907, data oficialmente instituída como o Dia do Frevo. Enquanto música, o Frevo é uma composição ligeira, de execução vigorosa. É uma alegre mistura de Polca e Dobrado, com influência do Maxixe,do Galope, da Quadrilha, da Marcha e do Tango brasileiro. Possui três categorias facilmente identificáveis: o Frevo-de-Rua (sempre instrumental e mais ‘pegado’, enérgico, frenético), a Marcha de Bloco (marcada pelo lirismo e nostalgia dos antigos carnavais, possui letra e é executado por uma orquestra formada por instrumentos de pau e corda, como o violão, o banjo e a flauta) e o Frevo-Canção (semelhante às Marchinhas cariocas, onde a poesia das letras fala sobre temas diversos, como o Recife, Olinda, o carnaval, a beleza da mulher pernambucana, o próprio Frevo).

O passo do Frevo, marcado pela liberdade de movimentos, nasceu muito mais do improviso do que de alguma coreografia previamente ensaiada, tornando esta dança peculiar e diferente de qualquer outra. Dos golpes de Capoeira, o passo evoluiu e continua a evoluir mais e mais a cada dia. Hoje, são catalogados mais de cento e vinte passos, o que exige muito treino, técnica apurada e excelente preparo físico. A roupa adequada para se cair no passo é aquela que permite a ampla movimentação do passista, pois o Frevo não exige roupa típica, vale a que der mais liberdade. Por isso, blusas curtas e minissaias rodadas são as preferidas pelas passistas, e bermudas e camisetas pelos passistas.

O Frevo, nascido e criado no Recife, cruzou fronteiras e hoje é mundialmente conhecido como uma música e dança alegre e vibrante, que encanta e empolga. Para cair no passo não basta apenas olhar a desenvoltura dos passistas, é preciso deixar a música fluir por todo o corpo, até explodir num passo rasgado!

“Quero sentir
a embriaguez
do Frevo,
que entra na cabeça,
depois toma o corpo
e acaba no pé!”
(trecho de Voltei Recife – Luis Bandeira)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Carnaval de Pernambuco V - Caboclinhos


Provavelmente o bailado mais antigo do Brasil, o Caboclinho foi registrado pela primeira vez em 1584, pelo Padre Fernão Cardim, em seu livro “Tratado e Terra da Gente do Brasil”. Esta obra foi o resultado de uma das missões dos jesuítas para catequizar os índios quando, na ocasião, os curumins (crianças) lhes apresentaram as danças indígenas.

Como o próprio nome indica, o Caboclinho é um folguedo de origem indígena. No Nordeste, a palavra caboclo é utilizada para designar aqueles que são filhos do cruzamento entre índio e branco. E os Caboclinhos são os filhos dos caboclos. Esse brinquedo é reconhecido pela sua musicalidade, melódica e percussiva, e também pela sua dança característica, representando um drama que simboliza batalhas, caçadas e colheitas. A música, leve e ligeira, é executada por flautins (flauta indígena com notas predominantemente agudas), bombinhos (surdos de pequenas dimensões, com som entre o médio e o agudo) e caracaxás (ganzás indígenas de alumínio ou latão, também extremamente agudos), algumas Tribos utilizam o reco-reco de madeira. Marcando o ritmo, os dançarinos utilizam os estalidos secos das preacas, conjuntos de arco e flecha, a principal característica dos Caboclinhos.

A dança dos Caboclinhos pode ser individual ou coletiva, fruto de uma coreografia previamente ensaiada. As coreografias são ricas e, entre as mais conhecidas, estão o Ataque de Guerra, a Aldeia, o Cipó e a Emboscada. Entre os toques mais executados, destacamos o de Guerra e o Perré, que é belíssimo. Exceto os músicos, todos os outros integrantes da Tribo se envolvem num bailado rápido, que exige, além de destreza, excelente forma física, pois o tempo todo rodopiam, se abaixam e se levantam agilmente, apoiando-se nas pontas dos pés e calcanhares.

A indumentária dos Caboclinhos é um atrativo à parte. Ricamente enfeitada, é composta de saiotes, cocares, pulseiras e tornozeleiras, todos feitos de pena de ema, avestruz ou pavão, além de colares com dentes de animais e pequenas cabaças presas à cintura. Como todo folguedo, os Caboclinhos possuem seus personagens com funções específicas dentro do bailado: o Cacique (ou Caboclo-Velho), a Índia-Chefe (ou Mãe-da-Tribo), o Pajé, o Matruá, o Capitão, o Tenente, os Perós (crianças), o Porta-Estandarte, os Caboclos de Baque (Músicos) e os Caboclos e Caboclas.

Existe outro folguedo que sempre é confundido com os Caboclinhos, os Grupos de Índios. Estes possuem características próprias que os diferenciam dos Caboclinhos, como o rosto pintado de vermelho, os cocares menores e de penas de garça, ema ou galinha, saiotes de sisal ou outra fibra vegetal e apresentam-se organizados em duas fileiras, com as índias portando machadinhas, de um lado, e os índios conduzindo pequenas lanças, do outro. Sua coreografia, contudo, é igualmente interessante, sendo conduzida por um conjunto com dois flautins, dois maracás e três bombos. Seus Mestres, quase sempre, são seguidores de cultos indígenas, como a pajelança.